sábado, 30 de janeiro de 2010

Rita Carvalho - novo texto




CARTOGRAFIAS DOS AÇORES

Sendo frequentemente entendida como uma descrição objectiva ou imparcial (porque oficial) de um território ou lugar, toda a cartografia é, no entanto, construção- objecto decorrente de escolhas, ou seja, da decisão de representar determinados elementos em detrimento de outros.

Este projecto liga-se precisamente a essa dimensão subjectiva e ficcional do mapa, explorando ainda o seu potencial narrativo.

As peças expostas surgem na sequência de uma viagem a 6 das ilhas do arquipélago açoreano. Para além do exotismo no que respeita a fenómenos naturais, o próprio isolamento das ilhas pareceu-me interessante porque propício a mitos, ou se quisermos, a uma História não-oficial. Com efeito, Sykes, que durante toda a sua vida perseguiu o mito da Atlântida1, estudou as ilhas dos Açores, apontando a possível presença de povos como os Celtas ou Cartagineses com base numa interpretação de textos, e ainda em alegados vestígios (moedas e estátuas) entretanto desaparecidos. Um dos episódios que o autor refere é citado numa das peças, a do mapa do Vulcão dos Capelinhos.

Explorei ainda textos que falam dos Açores do séc. XIX (como “Os Dabney: Uma família americana nos Açores” de Maria Filomena Mónica, ou de uma relação forte com o mar (como “Mar pela proa” do açoreano Dias de Melo ou “Mar” de Sophia de Mello Breyner.

Mas os elementos mais motivadores para este projecto foram os testemunhos de habitantes das ilhas, assumindo estes o protagonismo numa das peças. De facto, o mapa da Fajã da Caldeira de Santo Cristo descreve um lugar da ilha de S. Jorge a partir do relato de um dos seus habitantes, o Sr. Luís Alberto (que conheci, juntamente com o meu companheiro de viagem, numa visita a este local idílico).

Após o terramoto de 1980, a Fajã, que chegou albergar mais de 100 habitantes, ficou deserta e isolada no que respeita a comunicações e acessos. Apesar desse facto, o Sr. Luís e a sua mulher decidiram voltar para a Fajã, tornando-se nos seus únicos habitantes. Em conversa, o Sr. Luís contou-nos que na altura comentara com a mulher: “Parecemos Adão e Eva no Paraíso! Podemos andar nús à vontade que ninguém nos vê…” Contou-nos que chegaram a estar um mês sem verem ninguém. No mapa, o casal “bíblico” está representado ao centro, sendo a composição adaptada a partir de um elemento de uma Igreja de S. Jorge2.

Um outro episódio retratado no mapa é o do tecto da igreja que, segundo um habitante da fajã vizinha, foi em tempos transportada em braços para arranjo (até há pouco tempo, o acesso à Fajã era apenas possível a pé ou de burro).

A impressão mais forte nesta visita aos Açores foi a de uma inversão total daquilo que é comum no nosso quotidiano urbano. A ideia que quis transmitir com este mapa da Fajã foi precisamente a de um cenário para mim exótico, no qual a Natureza, em vez do Homem, é claramente dominante. De facto, no centro da minha vida está a urbe, a respectiva concentração de pessoas e edifícios, a escassez de animais, o trânsito, a velocidade, etc... Nas suas margens, está o contacto com a Natureza: as visitas esporádicas aos parques e ao campo durante os fins-de-semana. Nos Açores experiencia-se o oposto: as aves e a vegetação são os protagonistas do lugar, como que excluindo o Homem e o seu quotidiano urbano.

O mapa do Vulcão dos Capelinhos descreve a erupção de 1957/1958 que, surgindo no mar, gerou matéria que culminaria numa ampliação da área da ilha do Faial.

O vulcão é representado através de um monstro que emerge do mar e que controla a população dos Capelinhos que, aterrorizada, recorre à fé cristã. Mais uma vez, fica a ideia da Natureza como o factor dominante nos Açores. E de facto, o círculo onde se inserem as figuras pretende ter a conotação de uma espécie de Roda da Fortuna, onde os humanos não detêm poder sobre as suas vidas, estando à mercê da sorte ou neste caso, da Natureza.

Rita Carvalho

1. Existe uma lenda que aponta o grupo oriental das ilhas como sendo o local da Atlântida.

2. Durante a viagem fui recolhendo elementos iconográficos açoreanos, nomeadamente de arte sacra, adaptando-os às minhas narrativas.

BIBLIOGRAFIA

ANDRESON, Sophia de Mello Breyner- Mar. Lisboa: Editorial Caminho, 2004.

DIAS DE MELO- Mar pela proa. Ponta Delgada: Ver Açor, 2008.

HARMON, Katherine- You are here: Personal Geographies and Other Maps of Imagination. Nova Iorque: Princeton Architectural Press, 2004.

MÓNICA, Maria Filomena- Os Dabney: Uma família americana nos Açores. Lisboa: Tinta da China, 2009.

O´Neill, Alexandre- Reportagem nos Açores. Lisboa: Assírio e Alvim, 2007.

Sykes, Egerton- The Azores and the early exploration of the Atlantic. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 1968.

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