terça-feira, 19 de maio de 2009

Craig Atkinson | texto da exposição | by Paulo Patrício


foto: craig atkinson
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Invasão
Sinto-me como um médico. Em poucos minutos tenho que rever o historial do doente, equacionar respostas práticas, para as perguntas do costume, mencionar um ou outro caso muito semelhante, fazer um aviso mais sério e passar a respectiva receita. Tarefa ingrata, tendo em conta que a maioria dos visitantes estão para o texto que acompanha uma exposição, como um doente encara uma receita. Ou seguem tudo à risca ou fazem o que lhes apetece. Em qualquer um dos casos, se há receita, haverá cura; se há texto, há contextualização.
Vamos a ela: recorrendo a várias técnicas e ferramentas, Craig apresenta na Dama Aflita um conjunto de 200 desenhos, entre eles, retratos de gente vulgar, apontamentos arquitectónicos, diagramas enigmáticos, publicidade imaginária, edifícios isolados, aos quais junta frases soltas, títulos de notícias, nomes e datas. Num olhar corrido, o panorama é este, desenhos de toda a ordem e espécie, todos relativamente do mesmo tamanho, uns agrupados outros nem por isso, que tomam conta do espaço, sem estabelecer regras de percurso. A escolha do ponto de partida é livre e de ordem pessoal, mas quase de certeza que assenta numa aproximação aos detalhes: um bigodinho hitleriano, que se alastra como uma praga, de Ronald Reagan a Peter Sellers; um par muito tosco de pirâmides, anunciadas como "os edifícios mais altos do mundo", quando de facto não o são; as olheiras de um lutador de boxe, que dá pelo patético nome de André e parece estar em final de carreira; ou um cartaz, editado na década de 1970 para fins escolares, com um mapa das cidades de Inglaterra e o País de Gales, coberto com a frase Volta Para Donde Vieste, em que as letras estão interligadas. Aliás, interligações entre elementos repetem-se, diagramas, padrões, tramas e esquemas também. Como Craig trata de explicar, "ao aparecerem ao longo de uma série de desenhos, transformam-se numa metáfora ou padrão", criando "ligações entre imagens, que de outra maneira não estariam ligadas entre si". Servem para estabelecer uma coerência de conjunto ao sortido visual da exposição, verdade, mas também estão lá por razões pessoas. Afinal, estamos perante alguém "muito obsessivo no que diz respeito a fazer listas e sistematizar coisas", passa "horas a tentar arranjar maneiras mais eficientes de trabalhar", sem grandes resultados, admite. De resto, as "coisas grandes", como o universo, "interessam-lhe" e a ideia de sintetizar "uma coisa tão grande num diagrama tão pequeno é absurda, mas talvez não seja mais absurda do que tentar descrevê-la". Mais do que um argumento, esta comparação sublinha que o desenho serve para sintetizar, esquematizar, organizar e trabalhar ideias. O que durante muito tempo, pelo menos no "mundo das artes" (expressão anacrónica, não é?), impediu o desenho de ser tido e achado como autónomo, quanto mais não seja, por se tratar de um processo de aprendizagem artística, logo, incapaz de produzir reflexões que estivessem para lá de uma reflexão sobre o próprio desenho.
Voltando aos diagramas do Craig, além de estabelecerem coerência ao conjunto, sublinham a natureza impulsiva, desinibida e esquemática do próprio desenho. São uma afirmação de identidade, se quiserem. O que, como Craig explicou a propósito do absurdo, pode levar a reflexões sobre escala e espaço. Assuntos recorrentes no desenho contemporâneo, aos quais podemos ainda juntar identidade, valor, espaço e informação, presentes no trabalho de Natasja Kensmil, Timothy Nolan, Sarah Woodfine ou Marco Raparelli. Outros pontos em comum, em particular com este último, serão a ocupação territorial, a recriação de trabalho alheio e atribuição de novos significados e sentido narrativo, através do cruzamento de imagens com frases deslocadas do contexto original. Resultado da relação que temos com a informação, totalmente pulverizada, e a forma como lidamos com conteúdos, por parcelas e estímulos. Um título de uma notícia aqui, uma fotografia publicitária ali, o parágrafo de um blogue hoje, uma imagem polémica amanhã. Rearranjar, reorganizar e colar tudo, tendo em conta o imediato, "desenho aquilo que quero num determinado momento" admite Craig, e as circunstâncias, "o lugar onde estou ou com aquilo que está a acontecer à minha volta". Encarando o processo como uma técnica narrativa, "ter uma imagem no papel já ajuda a contar uma história", mas "não importa muito que história é, às vezes o fundo funciona bem e noutros está fora de contexto". E nessas histórias há personagens, "que podem muito bem existir", edifícios, "quando era miúdo queria ser arquitecto", e lugares, "um dia fiz um livro sobre Los Angeles, nunca estive lá", que são utilizados como um meio para criar factos. Através disso, cria cenários plausíveis para histórias que poderiam muito bem ter acontecido, mas se calhar nunca passaram, literalmente, do papel.

Paulo Patrício

Leituras Úteis:

The Drawing Book: A Survey of The Primary Means of Expression
Tania Kovats
Black Dog Publishing

Drawing Now: Eight Propositions
Laura Hoptman
The Museum of Modern Art - Nova Iorque

Vitamin D
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Phaidon

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